Saúde no Brasil depois da Pandemia – Provocações para uma agenda de debate

Saúde no Brasil depois da Pandemia – Provocações para uma agenda de debate

Assinado por Antônio Britto, diretor-executivo da Anahp, artigo reflete sobre os principais pleitos do setor

* Antônio Britto, diretor-executivo da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp)

Depois de 500 mil mortes, milhões de famílias destroçadas financeira ou emocionalmente e um país paralisado há ano e meio, o que pedir, além de uma imediata superação da pandemia?

Pessoalmente, tenho um sonho: que passado isso tudo o Brasil faça a mais efetiva e produtiva homenagem às vítimas da Covid e inicie, de forma construtiva e séria, uma grande revisão do nosso sistema de saúde.

Os problemas que a pandemia evidenciou, sabemos, existiam antes dela. O que ocorreu foi uma dolorida e intensa demonstração deles – das consequências da desigualdade social à má distribuição de nossos recursos humanos e tecnológicos; da falta de coordenação entre entes públicos ao desperdício na integração destes com o setor privado; da insuficiência de nossa pesquisa, por falta de políticas sustentáveis, a desestruturação do Ministério da Saúde.

A questão é: vamos virar a página, depois que a pandemia se for e não refletir nem mudar nada? Precisaremos esperar pela próxima pandemia? A Associação Nacional de Hospitais Privados – Anahp, na permanente parceria com entidades como a Abramed, tem reunido seu Conselho, seus associados, dialogado com médicos, profissionais de saúde, acadêmicos, representantes de pacientes, pagadores e fornecedores de serviços. E discutido muito alguns temas que não sendo uma agenda completa e extensiva ao menos indicam pontos que não deveriam estar fora de mudanças que precisamos encarar com seriedade e em respeito a tudo que todos nós, nossos familiares e nosso País está sofrendo. Apresento aqui, com visão pessoal, uma breve síntese desses pontos.

1. MAIS FORÇA, GESTÃO E RECURSOS PARA O SUS. Deve começar, sim, pela saúde suplementar, da qual fazemos parte, o respeito à organização ditada pela Constituição e a solidariedade com o Brasil mais profundo e mais pobre. Vale dizer: como a pandemia mostrou, por maiores que sejam suas dificuldades, viva o SUS. Não são mais adiáveis a discussão sobre fontes novas de financiamento e uma urgente revisão da forma como ele é gerido e, principalmente, é coordenado entre os governos federal, estaduais e municipais, problema que a pandemia transformou em festivais diários de idas e vindas, conflitos e ineficiência entre autoridades ao longo desses últimos meses.

2. PESQUISA, DESENVOLVIMENTO E PRODUÇÃO. A pandemia popularizou expressões como o insumo farmacêutico ativo, o IFA, e ao fazer isto denunciou o que se vive há anos: o Brasil consegue conciliar excelentes cientistas com, na média (como sempre) péssimas políticas de inovação. As boas, não se prolongam no tempo. Algumas bem-intencionadas acabam sendo dominadas por outros interesses. Então, passamos a ter dois tipos de cientistas brasileiros: os que fogem para o exterior na busca de condições à altura de seus talentos e os teimosos que insistem em aqui permanecer sem verbas, sem bolsas, sem segurança.  Quando descobrimos nossa constrangedora dependência de insumos farmacêuticos ou mesmo equipamentos hospitalares, estamos apenas reproduzindo o que já era o dia a dia do setor de saúde.  Por isso, repensar pesquisa, desenvolvimento e produção de forma moderna, integrada às melhores cadeias mundiais de produção, mas com forte estímulo ao nacional já era uma necessidade. Agora é uma emergência.

3. O PAPEL FUNDAMENTAL DA SAÚDE SUPLEMENTAR. A participação decisiva de hospitais privados, filantrópicos ou não; a intensa contribuição da rede de diagnósticos, liderada pela Abramed; o pagamento de serviços por empresas e cidadãos, através de operadoras de planos de saúde – tudo isto, espero, deve ter contribuído para que definitivamente tiremos do cenário o maniqueísmo entre os poucos que ainda defendem um País “só com SUS ou sem SUS.”  A mesma Constituição Federal de 1988 e a realidade brasileira – de interação e interdependência entre serviços públicos e facilidades privadas – deveria nos enviar à agenda real: como melhor integrar esses serviços. O que se fez no desespero com a falta de UTIS, nós deveríamos transformar agora em um construtivo exercício para evitar redundância, retrabalho e desperdício de profissionais e equipamentos em algumas regiões e escassez extrema em outras.

4. REDISCUTIR A FORMAÇÃO DOS MÉDICOS E DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE. De forma heroica, os recursos humanos do setor de saúde tiveram que aprender sobre a doença, enfrentar turbilhões de filas desesperadas e aprender a trabalhar de uma forma mais integrada. Revelou-se, pela milésima vez, a péssima distribuição dos recursos humanos pelo País e o caminho cada vez perigoso seguido na formação de médicos – o abandono, por falta de estímulos, dos generalistas, médicos de família, pediatras. Uma proliferação de cursos desacompanhados de qualificação mínima. A formação de quantidade de médicos mais que de médicos em condições de um exercício hoje exigido da profissão. Aqui, como em outros temas, a aumentar quantidade (desejável) não ser feita ao preço do abandono da qualidade e do rigor na formação.

5. DEFINIR BASES QUALIFICADAS PARA APOIAR ACESSO COM TECNOLOGIA. A pandemia teve minoradas algumas de suas consequências graças à vigorosa ampliação da utilização de tecnologia para tele consultas, telediagnósticos, enfim os benefícios da telemedicina. Vamos agora, através do exercício do papel regulador do Conselho Federal de Medicina e do poder legislativo do Congresso Nacional regulamentar essa questão. Temos aí chance extraordinária de ampliar acesso, aproximar o Brasil dos rincões desassistidos com o Brasil de excelência. Como fazer isso estabelecendo um equilíbrio realista entre a preservação do papel do médico e a necessidade de aumentar a presença da medicina? Como evitar que a telemedicina tenha como eixo a simples redução de custos em vez de ser acima de tudo ampliação qualificada de acesso integrado ao menor custo. Vale dizer: pela ordem acesso coordenado e com qualidade/dignidade depois o custo e não o contrário.

6. DAR SUSTENTABILIDADE A QUALIDADE. Não é privilégio do setor de saúde. No Brasil, dadas as médias precárias em setores como o nosso, mas também em educação, segurança, e tantos outros cria-se uma espécie de “ciúme” do que está bem-organizado, oferecendo qualidade, olhando e comparando-se aos melhores padrões mundiais. No jargão da retórica nacional, fala-se que isso “é coisa de Suécia”. Na pandemia, nosso lado “sueco”, através de hospitais e laboratórios acreditados ofereceu saber, distribuiu conhecimento e equipamentos de forma solidária, acelerou com eficiência pesquisas para vacinas, estabeleceu padrões e disseminou condutas ainda que em meio ao turbilhão causado pela Covid-19 e aos períodos de perda de receita e de recursos humanos. Os melhores resultados no tratamento vieram claramente de hospitais privados e públicos de excelência, com recursos tecnológicos atualizados, equipamentos sofisticados e gente, gente capacitada. Esses mesmos hospitais e laboratórios continuarão sendo penalizados pela obsessão de seguirem trabalhando atualização tecnológica e qualificação acreditada e certificada de pessoas, processos e gestão? Queremos estar mais próximos ou ainda mais distantes da “Suécia”?

7. O FINANCIAMENTO DAS ATIVIDADES PRIVADAS. Uma síntese muito precária do que ocorre hoje mostra um esgotamento do sistema previsto para estimular e financiar a saúde suplementar. Um país que oferece níveis baixíssimos de empregos qualificados e renda média retira boa parte das possibilidades de adesão a planos de saúde. Estes, concentram-se então em uma fonte pagadora essencial – as empresas que por sua vez, pressionadas pela crise econômica, reduzem seus aportes. O sistema fica então girando em torno de 45 a 50 milhões de vidas, mais ao sabor dos soluços para cima ou para baixo da economia do que de crescimento orgânico, números muito abaixo do que podemos e necessitamos. Em vez de rompermos os limites, os planos de saúde (ou na feliz expressão do Adriano Londres, “planos de doença”) pressionam por redução de custos (o que é saudável) em grande parte às custas de cortes de qualidade (o que é inaceitável). Os prestadores de serviços médico-hospitalares, elo seguinte da pressão, reduzem sua segurança financeira, mesmo muitos dos maiores, e passam a depender de fontes como o trabalho de ministrar medicamentos. Ao fim desse carrossel de responsabilidades transferidas sem o efetivo endereçamento das causas, fica o paciente…

8. OS ELOS PARTIDOS DA CADEIA DE SAÚDE. Se pacientes, profissionais de saúde, operadoras de planos de saúde, prestadores de serviços médico-hospitalares, fornecedores, contratantes de planos de saúde etc. – se todos estão insatisfeitos não seria isto sinal mais que evidente que o problema está no sistema como um conjunto e, portanto, a solução deveria depender de uma revisão do todo? Não no Brasil. Os elos da cadeia de saúde têm se dedicado, como mostra o noticiário, à tentativa inútil de salvar o seu terreno sem se darem conta que vivem em um condomínio sem cercas nem muros… Parece uma obviedade desmentida pelo dia a dia, mas ainda assim repetida cansativamente que, por exemplo, aumentar a receita de planos de saúde com planos populares não adianta se estes não permitirem acesso. O que os planos de “uma só consulta/um só exame” respondem se o cliente/paciente precisar de mais? Ao contrário de outros setores da vida brasileira, a cadeia da saúde tem claras dificuldades em atuar como tal e tentativas nesse sentido em geral mostram-se no máximo anêmicas, vitimadas pelo vírus das individualidades ou da visão apenas segmentada. A cadeia da saúde acaba se apresentando como uma sucessão de elos partidos.

9. CUIDA-SE DA SAÚDE? NÃO, DA DOENÇA. Como referido antes, uma obviedade exaustivamente repetida por qualquer iniciante em políticas públicas de saúde, no Brasil é fato raro: nenhum sistema no mundo torna-se justo, eficiente e sustentável se não intervier fortemente na prevenção e proteção à saúde. O país que um dia combateu o tabagismo e registrou sucesso exemplar, dá as costas à atenção primaria à saúde. Prefeitos não gostam de inaugurar “equipes de saúde de família”. Preferem dar início às obras inacabadas e tecnicamente inviáveis de prédios que chamam de hospitais e que são insustentáveis em todos os sentidos. Perguntem a ANS quantos produtos registrados contêm efetiva atuação na proteção à saúde, no combate a obesidade, hipertensão, diabetes. Ou seja: entre nós a atenção primaria à saúde NÃO CONQUISTOU STATUS POLÍTICO NEM RECEBE ESTÍMULOS FINANCEIROS. Resultado: próximo de zero. Nossa cultura, nossos produtos e principalmente nossos estímulos apontam na direção oposta e errada: tentar cuidar da doença em um País com longevidade cada vez maior.

10. NÃO HÁ SAÚDE NA DESIGUALDADE. Os primeiros estudos e a própria observação cotidiana apontam outro fato que, não sendo novo, ficou “escancarado” pela pandemia: a doença, entre nós, é filha, acima de tudo, da desigualdade.

As mortes anônimas diárias por desnutrição, falta de saneamento, violência, miséria, enfim, não mudaram na pandemia. Apenas chegaram às televisões. Um sistema de saúde sustentável, pós pandemia, não pode dar as costas as discussões gerais sobre a economia, a geração de emprego e de renda. Ou seguiremos enxugando gelo e contando mortos que mereciam e poderiam estar entre nós.

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