* Por Carlos Senne, presidente do Conselho do Senne Liquor Diagnóstico
3 de junho de 2020
Vivemos um momento de inúmeros desafios gerados pela disseminação mundial de um patógeno ainda pouco conhecido. Por isso, surgem desafios multidisciplinares que abrangem especialidades diversas e chegam, inclusive, à neurologia, já que possivelmente estamos falando de um vírus neurotrópico.
Em um primeiro momento, especialistas enxergavam a COVID-19
como uma afecção pulmonar. Posteriormente, foram apontados problemas de
coagulação e vimos os pacientes infectados pelo novo coronavírus com sintomas
renais. Na sequência, observaram-se manifestações neurológicas associadas à
infecção. Nenhuma dessas constatações pode ser negligenciada.
Em fevereiro, antes mesmo de a Organização Mundial da Saúde
(OMS) declarar pandemia do novo coronavírus, surgiram estudos internacionais –
muitos deles na China, primeiro país fortemente afetado pelo patógeno –
apontando relações entre sintomas neurológicos e COVID-19. Um deles, por
exemplo, afirmava que 36,4% dos 214 pacientes internados com infecção causada
pelo novo coronavírus apresentavam sintomatologia neurológica, entre elas
tontura, cefaleia e mialgia com aumento das enzimas musculares.
Além disso, verificamos que anosmia e ageusia,
respectivamente perda do olfato e do paladar, poderiam aparecer em até 85% dos
pacientes com diagnóstico confirmado, enquanto somente 18% deles desenvolviam
obstrução nasal e rinorreia, indicando que esses sintomas não estão associados ao
acometimento das mucosas, mas sim de nervos cranianos como, por exemplo, o
nervo olfatório.
Comum em outras infecções graves, a encefalopatia também
pode acometer pacientes infectados pelo novo coronavírus, gerando agitação
psicomotora, confusão mental e rebaixamento do nível de consciência causada por
hipóxia, produção exagerada de mediadores inflamatórios com efeitos em SNC e
até mesmo como resultado de medicações depressoras do SNC e crises epilépticas
subclínicas.
Reforçamos: não podemos negligenciar e deixar de diagnosticar
corretamente pacientes com suspeita de COVID-19 e manifestações neurológicas.
Estudos internacionais também destacam outras condições
possivelmente associadas à COVID-19, como encefalopatia necro-hemorrágica,
síndrome de Guillain-Barré, Acidente Vascular Cerebral (AVC) e encefalite. Esta
última, por sua vez, foi primeiramente apontada em um paciente chinês de 56
anos de idade com rebaixamento de consciência. Nesse caso, o exame do líquido
cefalorraquidiano (LCR) não mostrou alterações na celularidade e bioquímica,
mas no RT-PCR foi identificado o novo coronavírus.
Na sequência, outro paciente analisado apresentou encefalite
associada à COVID-19 com crises epilépticas refratárias após nove dias de
sintomas respiratórios. Na ocasião, a ressonância magnética mostrou lesão
compatível com encefalite. Em um terceiro caso estudado de paciente com
encefalite, o LCR não foi coletado, mas a autópsia identificou o coronavírus no
tecido cerebral.
Diante desse panorama, o acompanhamento neurológico é
fundamental em pacientes acometidos pela COVID-19, com os médicos responsáveis
sempre avaliando a necessidade de submeter essas pessoas a exames de LCR e de
imagem, além de avaliações cognitivas e biomarcadores liquóricos como, por
exemplo, o neurofilamento de cadeia leve (NfL).
Outro fato que precisa ser estudado emergencialmente e que nós,
como especialistas em diagnósticos neurológicos, já estamos investindo em
pesquisa, está nas consequências da COVID-19 durante a gestação e na saúde dos
recém-nascidos. Estudos chineses mostram que as mulheres que contraíram a
infecção no último terço da gestação tiveram bebês predominantemente saudáveis,
nos quais não foi identificado o novo coronavírus, nem no líquido amniótico,
nem no sangue. Porém, de que forma a COVID-19 pode afetar mulheres que
engravidaram agora, durante a pandemia, e que, portanto, estão expostas ao
patógeno nos primeiros meses de gravidez? A nossa experiência com o Zika Vírus
associado à microcefalia nos obriga a ficar atentos a essa situação.
Em seis meses de convivência com o novo coronavírus, com
toda a comunidade científica mundial debruçada em pesquisas e estudos para
melhor compreensão de como o patógeno afeta o corpo humano, concluímos que se
trata de uma doença multidisciplinar e que nenhum sintoma deve ser
negligenciado, muito menos suas manifestações neurológicas.
* Carlos Senne é médico, especialista em patologia
clínica e presidente do Conselho do Senne Liquor Diagnóstico