Encontro virtual promovido pela LabRede coloca em debate a nova consulta pública proposta pela Anvisa que considera a realização de exames fora dos ambientes laboratoriais
25 de setembro de 2020
Na noite de 24 de setembro, três especialistas da área
laboratorial estiveram reunidos em um debate virtual promovido pela LabRede
para discutir a Consulta Pública 912, que envolve a revisão da RDC
302 e impacta diretamente o setor de medicina diagnóstica. Mediada por
Roberto Joji Kimura, biomédico e CEO da Sancet Medicina Diagnóstica; a conversa
recebeu Luisane Vieira, médica patologista clínica, auditora e consultora em
gestão de qualidade; e Wilson Shcolnik, médico patologista clínico e presidente
do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica
(Abramed).
O webinar traçou um paralelo entre a expectativa do setor
quanto à revisão da RDC 302 e a realidade que está se construindo com base na
proposta da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Foram colocados
todos os principais pontos de discordância do segmento quanto à essa
legislação.
Quando o setor analisou o texto da CP 912, na opinião de
Shcolnik, o primeiro sentimento foi de espanto e preocupação, visto que foram
muitas as solicitações para que a revisão da RDC 302 entrasse na agenda, mas o
texto apresentado para a consulta pública deixa de considerar muitos dos
apontamentos dos laboratórios clínicos. Porém, na visão do presidente da
Abramed, vivemos um momento oportuno para que todos estejam unidos em prol de
uma única batalha.
“Esse cenário criou uma oportunidade para que as entidades
se aglutinassem em torno desse tema. É um momento importante para a história
das análises clínicas”, enfatizou ao mencionar que uma recente reunião com a
Anvisa para tratar especificamente desse assunto contou com a participação do Conselho
Federal de Medicina (CFM), Conselho Federal de Farmácia (CFF), Conselho Federal
de Biomedicina (CFBM), Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC),
Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML),
Confederação Nacional da Saúde (CNSaúde), Associação Brasileira de Biomedicina
(ABBM), além da Abramed e de vários sindicatos de várias regiões do país.
Um dos primeiros pontos de estranhamento apresentados no
debate diz respeito a mudanças diretas no cenário de exames laboratoriais. “A
impressão que tivemos foi que há um movimento para realização de exames
laboratoriais em configurações diferentes das atuais, uma ampliação para que
esses exames possam ser realizados por outras entidades como se análise clínica
fosse uma atividade que pode ser feita por qualquer pessoa e em qualquer
equipamento”, comentou Luisane.
Concordando com essa percepção, Shcolnik enfatizou a
relevância das análises clínicas, atividade responsável por exames preditivos,
confirmação de diagnósticos, definição e monitoramento de tratamentos e,
inclusive, pela medicina personalizada, um grande avanço da saúde que depende
dos resultados laboratoriais para ser constituída. “Nos sentimos
desprestigiados diante dessa nova proposta”, apontou.
Testes Laboratoriais Remotos – TLR
Os Testes Laboratoriais Remotos (TLR), também conhecidos por
sua terminologia em inglês Point-of-Care (POCT), existem há décadas no mercado
e já eram mencionados na RDC 302. Com essa nova consulta pública, o assunto
volta ao debate. “Nós que trabalhamos em laboratórios clínicos sabemos das
virtudes e dos problemas desses testes, então a questão mercadológica não nos
assusta”, explicou Shcolnik. Na visão do executivo, o problema está na forma
como esses testes são realizados. “Temos visto exames sendo feitos em
farmácias, mas também em outros locais como postos de gasolina, consultórios
odontológicos e até pet shops. Será que todo mundo tem capacitação para
realizar um exame, por mais simples que seja o dispositivo?”, questionou
lembrando que o setor de laboratórios é um setor regulado com muita rigidez e
que deve permanecer assim para que os interesses sanitários e populacionais
sejam plenamente atendidos.
Para os especialistas, um dos pontos mais importantes e que
precisam ser questionados está em quais exames serão permitidos fora do
ambiente laboratorial. “Uma tira reagente de urina, uma pesquisa de sangue
oculto nas fezes, uma glicemia em sangue capilar, são exemplos com equipamentos
e sistemas de operação simples onde o risco é considerado tolerável para que
seja executado sem toda a regulamentação que o laboratório clínico deve
atender”, disse Luisane antes de explicar por qual motivo os TLRs são
considerados complexos.
“Podemos fazer um teste para dengue em uma campanha de saúde
de forma remota e podemos fazer dentro do laboratório. É o mesmo teste. O que
caracteriza o TLR é que o resultado será entregue sem passar por toda a cadeia
que o laboratório executa antes da geração do laudo. O resultado é imediato e
por isso é de alto risco”, explicou.
Complementando esse raciocínio, Shcolnik, que é médico
patologista clínico, questionou até onde a Anvisa pretende liberalizar os
testes. “Hoje temos TLR até para biologia molecular e metodologias mais
complexas. É desejo da Agência liberar todos os tipos de testes fora do
ambiente laboratorial? Será que a população estará segura para receber
resultados com essa complexidade?”, questionou.
Segundo o executivo, a própria consulta pública conta com
documentos e estudos internacionais que mostram que os outros países impõem
limites claros. “A Inglaterra permite a realização apenas de glicemia,
colesterol, gripe e hepatites A e B nas farmácias. Na Escócia, o documento diz
que farmácias podem realizar apenas testes de gravidez e de HIV. Já a França
autoriza a realização desses testes fora dos laboratórios para glicemia,
influenza e estreptococos do grupo A”, apontou.
O que está por trás da limitação? São criadas categorias
para os testes remotos com base em diversos critérios como conhecimento,
treinamento, experiência; preparação de materiais e de reagentes; e
características dos espaços operacionais. Além disso, a liberação dos exames
também obedece a critérios como calibração, controle de qualidade, ensaios de
proficiência, resolução de problemas comuns, manutenção dos equipamentos,
interpretação e julgamento de resultados. “Tanto o local quanto a pessoa que
vai realizar esses testes fora do ambiente laboratorial devem atender a todos
esses requisitos que servem para categorizar os exames”, completou Shcolnik.
Programas de ensaio de proficiência, inclusive, são
fundamentais, na opinião do executivo, para que os diferentes kits que
apresentam desempenho variável tenham essas diferenças evidenciadas e possam
ser sinalizados aqueles com melhor qualidade.
Expectativa x Realidade
Shcolnik se mostrou confiante. “Acredito que com os dados
que apresentamos à Anvisa e com todo o nosso conhecimento para contribuir com
uma revisão saudável da RDC 302 chegaremos a um bom termo que levará benefícios
para todos nós, profissionais sérios que atuam em laboratórios clínicos, e para
todos os pacientes que recorrem aos nossos serviços”, disse.
Parafraseando Ariano Suassuna, Luisane disse que “o otimista
é bobo, o pessimista é chato e bom mesmo é ser um realista esperançoso”. Para
ela, é preciso entender o atual cenário e se posicionar. “Gostaria que todos
lessem a CP 912 e comparassem com a RDC 302 e que se manifestassem”, comentou ao
incentivar que tanto pessoas físicas quanto pessoas jurídicas acessassem a
consulta pública para opinar.
Encerrando o webinar, Kimura questionou: “qual vai ser o
desfecho disso tudo?”. Segundo ele, o momento é dinâmico e trará muito
aprendizado e conhecimento para todos.