Os presidentes da Abramed (Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica) e Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC), Wilson Shcolnik e Luiz Fernando Barcelos, respectivamente, assinaram o artigo “Exames realizados fora do ambiente laboratorial? É importante inovar sem desproteger”, publicado no Estadão nesse sábado (10/10).
Confira o texto na íntegra:
Exames realizados fora do ambiente laboratorial? É importante inovar sem desproteger
Apesar de ganharem ainda mais notoriedade durante a pandemia de COVID-19 como forma de suprir a carência por exames para detecção da infecção pelo novo coronavírus, os Point-of-care tests (POCT), também conhecidos como Testes Laboratoriais Remotos (TLR), já são uma realidade há décadas no setor de diagnóstico, e os profissionais que atuam em laboratórios clínicos conhecem tanto suas virtudes quanto seus problemas.
Esses testes, que podem ser realizados por dispositivos portáteis fora do ambiente laboratorial, já eram inclusive mencionados na RDC 302, que, publicada em meados de 2005 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), regula o funcionamento dos laboratórios clínicos impondo rígidas recomendações que balizam a segurança sanitária e, consequentemente, conferem segurança aos pacientes.
Sabemos que eles são úteis por proporcionarem reações rápidas, trazendo resultados de forma praticamente imediata. E, de fato, reconhecemos que eles podem contribuir, sobretudo em catástrofes, guerras ou desastres naturais ou, ainda, para preencher eventuais lacunas existentes no cuidado, porém desde que sejam integrados aos sistemas de saúde, que já sofrem com a fragmentação da assistência. Afinal, apesar de rápidos, esses testes não deixam de ser exames laboratoriais. Hoje temos POCT inclusive para biologia molecular, metodologia de alta complexidade utilizada em laboratórios clínicos.
Há algum tempo o setor de análises clínicas vem observando um forte movimento da indústria em prol desses exames, o que despertou a atenção da Anvisa. Isso é plenamente compreensível pois não podemos esquecer que a missão da Agência é promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e do consumo de produtos e serviços, inclusive as tecnologias a eles relacionadas.
A RDC 302 – regulamento técnico para funcionamento de laboratórios clínicos –, é uma excelente resolução que promoveu melhoria significativa na qualidade dos laboratórios no Brasil, mas necessita de revisão, algo que o setor vem pleiteando há tempos.
Surpreendentemente, o que vimos acontecer recentemente foi não uma revisão dessa RDC, mas a sua substituição por um novo texto que está em consulta pública. A proposta da CP 912 cogita, sem limites, a liberação da realização de exames fora dos ambientes altamente controlados dos laboratórios clínicos, adota terminologias incompatíveis com a realidade internacional, desconstrói os laboratórios brasileiros, desrespeita os profissionais do setor e coloca gravemente em risco a segurança dos pacientes.
Há farta literatura científica comprovando que a maior parte dos erros nos exames realizados remotamente ocorre durante a fase analítica, ou seja, por falhas de operadores na calibração dos equipamentos e na avaliação dos controles de qualidade que asseguram a precisão e exatidão dos resultados. Por isso, o setor questiona: como garantir que esses exames sejam feitos de forma segura para não colocar em risco a segurança dos pacientes?
Segundo estudo compilado nos arquivos da CP 912, outros países impõem limitações à realização de POCT fora dos laboratórios. A Inglaterra, por exemplo, só os permite em farmácias para controle de glicemia, colesterol, gripe e hepatite. Além da glicemia, a França autoriza para influenza A e B e estreptococos. Já a Escócia, apenas para testes de gravidez e de HIV.
E no Brasil? Será que é desejo dos órgãos reguladores liberar todos os tipos de testes fora do ambiente laboratorial? Será que a população pode ser exposta com a realização de testes complexos sem a segurança hoje exigida pela RDC 302? Será que resultados críticos, que exigem intervenção médica imediata, podem ser obtidos desta forma?
Cabe à Anvisa regulamentar esse tipo de serviço, garantindo que tanto as recomendações das sociedades científicas que atuam nesse setor quanto as normas internacionais sejam seguidas independentemente do local onde o exame é realizado. Os ambientes e equipamentos devem ser adequados, e os profissionais, habilitados e capacitados, como já previsto pela RDC 302.
Sabemos que resultados de exames laboratoriais são responsáveis por 70% das decisões médicas e têm papel importante na detecção de fatores de risco, podendo mudar completamente o rumo do diagnóstico, do monitoramento e do tratamento de doenças. Reduzir o controle de qualidade desses exames é expor a novos riscos os cidadãos que recorrem a eles para preservar e tratar sua saúde.
Esperamos chegar a um modelo que beneficie e proteja, de forma efetiva, os maiores interessados nesse processo: os pacientes. Com a palavra da nossa agência reguladora, a Anvisa.
* Wilson Shcolnik é presidente da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) e presidente do conselho de ex-presidentes da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML) e membro da Câmara Técnica de Segurança do Paciente do CFM.
* Luiz Fernando Barcelos é presidente da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas.