Por Ana Carolina Navarrete*
Não é novidade que o mercado de saúde é fragmentado, e uma das principais discussões atuais se dá em torno da formação dos chamados ecossistemas, seja por movimentos de verticalização (termo usualmente empregado para se referir a processos em que operadoras passam a ser elas próprias donas da rede de atendimento), quanto de concentração (em que prestadores passam a também intermediar esquemas de pagamento por carteiras mutualistas).
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) não tem posição contrária ou favorável a determinado modelo de negócio ou outro. Nosso foco é na qualidade e no direito à saúde do usuário, o que passa pela busca do desfecho último ser a saúde dele. Assim, se estamos falando de um plano com livre escolha, com acesso exclusivo pela rede credenciada ou referenciada, ou de um plano verticalizado, nossa avaliação se direciona à qualidade desse atendimento.
Importante ressaltar que cada modelo de negócio tem suas vantagens e desvantagens, dependendo da perspectiva, por isso precisa de atenções diferentes da reguladora.
No caso da verticalização, estamos diante de uma estratégia para alcançar vantagens de redução de custos através da criação de redes próprias de atendimento. Contudo, um ponto de atenção que achamos que precisa estar no horizonte de quem atua ou regula esse mercado é a proximidade de interesses contrapostos ou os conflitos de agência, para usar o termo da literatura econômica – “quem prescreve não olha a conta” –, o que pode gerar altos custos.
Entretanto, há casos brasileiros que demonstram os riscos de conciliação desses interesses em torno de um agente só. Quando tratamos de modelos verticalizados, quem prescreve responde diretamente a quem paga a conta, o que pode, sim, gerar decisões ruins para o desfecho de saúde, prejudicando a qualidade. É o que vimos, por exemplo, com operadoras verticalizadas, que, a pretexto de pensar em soluções para a desospitalização, optaram por usar, em seus protocolos de atendimento, medicamentos comprovadamente ineficazes para tratar a covid-19.
Possivelmente estamos falando de outros motores, além do econômico, para a prescrição de cloroquina, mas esses casos demonstraram a lacuna que temos na hora de controlar problemas sérios de assistência médica de baixíssima qualidade. O que ficou bastante claro na “CPI da Covid”, foi um grande conflito negativo de competência sobre quem deveria ter fiscalizado, evitado e punido operadoras que se valeram do “óbito também é alta”.
Já no segundo caso, da concentração de mercados da saúde, em que hospitais passam a ser eles mesmos donos de operadoras de planos de saúde ou healthtechs – startups que trabalham com soluções tecnológicas para a saúde – há uma reflexão que precisa ser feita sobre o poder de mercado que essas empresas podem exercer. Se de um lado é possível um maior controle sobre a estrutura de custos, de outro tem-se maior dominância de mercado, com repercussões para o ambiente concorrencial que precisam ser devidamente endereçadas pelo CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica.
Além disso, há muita promessa de que esses ecossistemas possam aglutinar informação e capacidade de gestão que signifique economia para consumidores e precisamos ser realistas sobre o que é fato e o que é expectativa. É raro ver ganhos de eficiência com boa gestão serem diretamente repassados para o consumidor pelas políticas de preço e reajuste.
O episódio do reajuste negativo dos planos individuais ilustra bem a situação. As economias consideráveis que o mercado experimentou com a pandemia em 2020 foram refletidas para planos individuais uma vez que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) determina o reajuste máximo dessas carteiras e monitora a variação das despesas médico-hospitalares desse mercado. Já as carteiras coletivas, de regulação mais livre, tiveram reajustes positivos e alguns até bem elevados. Desobrigadas de reajustar de acordo com uma regulação específica, os ganhos de 2020 não foram repassados ao consumidor dos planos coletivos.
Uma última discussão ainda afeita aos ecossistemas diz respeito à promessa de uso intensivo de tecnologia. O Idec vem identificando a necessidade de aprofundar seu monitoramento e atuação no tema da saúde digital desde 2019, especialmente no que concerne ao uso de dados de usuários para precificar de maneira discriminatória – o chamado health score. Em 2020, os Programas de Saúde e de Telecomunicações e Direitos Digitais criaram uma interface para possibilitar uma atuação mais integrada e interdisciplinar. Esse é um reconhecimento de que a digitalização de serviços de saúde é uma tendência irreversível, que se agrega aos demais debates que esse setor vem travando.
Startups de saúde são mais um agente econômico que chega neste mercado, demandando, sem dúvida, uma atenção específica de reguladores. Ao mesmo tempo em que esses serviços, baseados no uso de dados de consumidores, podem ser positivamente utilizados, por exemplo, para prevenção de doenças, por outro, eles podem permitir que empresas tracem perfis de usuários sobre os quais estes saibam muito pouco, ou cobrar preços mais elevados de alguns, de acordo com as condições de saúde. Se endereçar a estes riscos requer não apenas a atuação da ANS, mas também da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
E nesse sentido, é importante ressaltar como a regulação não é entrave para o crescimento da saúde suplementar, mas sim peça-chave para o equilíbrio desse mercado. Crescer aumentando iniquidades em saúde, a partir de modelos que exploram, porém não entregam valor ao usuário e às comunidades, é inviabilizar o projeto que a Constituição destinou à iniciativa privada em saúde – perseguir o interesse público.
*Ana Carolina Navarrete é coordenadora do Programa de Saúde do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).