Outras aplicações incluem educação continuada, tratamento humanizado, discussões de casos e planejamento cirúrgico
Já ouviu falar em medicina diagnóstica olfativa? Pois saiba que essa é uma das possibilidades do metaverso na saúde. Especialistas treinados poderiam sentir o “cheiro de câncer” em estágios prematuros, segundo Fabricio Campolina, presidente da Johnson & Johnson MedTech Brasil, referência quando o assunto é tecnologia, inovação e transformação digital.
Ele acredita que, em algumas décadas, identificaremos a combinação de moléculas olfativas que permitem a um cachorro farejar câncer de mama em estágios iniciais. Imagine um dispositivo que identifique essa combinação e envie um sinal elétrico diretamente à área olfativa frontal em nosso córtex cerebral!
O metaverso é uma experiência que proporciona a ilusão de que o mundo digital é real, permitindo que o cérebro assimile muito mais o conteúdo passado devido à criação de sinapses. “Ele tem potencial para transformar a experiência dos indivíduos envolvidos no ecossistema da saúde, incluindo pacientes, médicos, profissionais atuantes da área e pesquisadores”, ressalta.
As principais aplicações dessa tecnologia na área da saúde são em educação continuada, tratamento humanizado, terapias cognitivo-comportamentais, atendimento, discussão de casos e planejamento cirúrgico.
Na prática
O Johnson & Johnson Institute (JJI), em São Paulo, utiliza o metaverso para educação continuada de residentes e especialistas das áreas de ortopedia e saúde cardíaca/eletrofisiologia, permitindo maior visibilidade das condições estudadas.
Outro caso de grande potencial está relacionado ao tratamento humanizado de câncer infantojuvenil. O Hospital de Amor, em Barretos, SP, usa uma ferramenta que transporta a criança em tratamento oncológico a um mundo de fantasia, fundindo animação em realidade virtual (RV), com sensação tátil do tratamento.
Durante exames e vacinações, o metaverso pode distrair os pacientes e proporcionar experiências visuais imersivas, como jogos ou cenários de natureza, reduzindo a percepção de desconforto e dor. A tecnologia também está sendo testada em terapias cognitivo-comportamentais, no caso de pacientes no espectro autista, e também no tratamento de fobias, transtornos de ansiedade e pânico, bem como traumas.
No campo do atendimento, a ferramenta pode ser usada para criar uma simulação onde as pessoas possam interagir como se estivessem em um call center. O objetivo é oferecer uma experiência mais ampla e interativa, com um avatar treinado para fornecer informações sobre exames, agendamentos, localizações e até mesmo mostrar o caminho no mapa.
“A vantagem é que, ao contrário de um call center tradicional, no metaverso é possível compartilhar o que está na tela, como o Waze, por exemplo”, explica Eliézer Silva, membro do Conselho de Administração da Abramed, diretor do Sistema de Saúde Einstein do Hospital Israelita Albert Einstein.
Além disso, o metaverso permite que os médicos sejam treinados em ambientes virtuais que simulam com precisão o ambiente cirúrgico real, melhorando a qualidade das cirurgias robóticas. Estudo publicado no Journal of Surgical Education revelou que o treinamento em realidade virtual está associado ao aprimoramento das habilidades cirúrgicas e à redução de erros em comparação com os métodos tradicionais.
Justamente com foco em pesquisas, discussões de casos e planejamento de cirurgias foi criado o Biodesign Lab da Dasa, em parceria com a PUC-Rio. Com base em imagens de exames, como ultrassonografia, ressonância magnética e tomografia computadorizada, o laboratório faz uma replicação tridimensional para uso no metaverso. Isso permite discutir um caso virtualmente, sem deslocar a equipe.
O ginecologista Heron Werner, coordenador do Biodesign Lab, ressalta que todas as ferramentas de reconstrução de imagem em 3D dependem do exame original. Essas imagens ajudam a melhorar a comunicação em uma discussão multidisciplinar e planejamento cirúrgico, por exemplo.
Para ilustrar, no caso de um diagnóstico de craniópagos (gêmeos que nascem ligados pelo crânio), as informações adquiridas nos resultados de exames de ultrassom e ressonância magnética no pré-natal serão somadas aos exames realizados no pós-natal, mostrando a evolução da condição.
“Outras modalidades de imagem enriquecem a análise da situação e ajudam a manejar a conduta em casos complexos. Isso é feito no mundo todo, e começamos aqui. Muitos grupos de outros países pedem para ajudarmos com essas reconstruções. Isso é muito gratificante”, expõe Werner. Entre as especialidades que mais usam essa tecnologia estão dermatologia, neurocirurgia, ginecologia e ortopedia.
Que tecnologias são utilizadas?
O dispositivo de entrada neste mundo digital é a principal tecnologia nessa revolução, sejam óculos de Realidade Virtual, como o Oculus Quest 2, da Meta, sejam óculos de Computação Espacial, como o Vision Pro, da Apple.
Outro elemento-chave é a conexão estável com a internet, que se obtém por meio de redes 5G ou acesso Wi-Fi por meio de redes de fibra óptica de alta velocidade. “No futuro, devemos ver essa experiência evoluir para incluir todos os nossos sentidos e de forma cada vez mais imersiva, como visão hiper-realista, sons em 3D, sensação tátil, olfativa e de calor e frio”, acrescenta o executivo da Johnson & Johnson.
Um ponto fundamental, mas pouco comentado, é o ambiente digital que será acessado pelo metaverso para educação continuada. Um ambiente realista ajuda os alunos a se envolverem e a assimilarem o conhecimento de forma mais efetiva, proporcionando uma experiência mais próxima do real. Enquanto um ambiente pouco realista pode comprometer a imersão dos estudantes, dificultar a compreensão de conceitos e reduzir a eficácia geral da aprendizagem.
Primeiros passos
As instituições de saúde, mesmo as pequenas, podem fazer parceria com empresas de tecnologia – healthtechs, startups, até mesmo com a Apple e o Google – para aprender como utilizar melhor a realidade estendida. Uma alternativa, adotada pelo Hospital Israelita Albert Einstein, foi a criação de uma incubadora de startups, proporcionando um ambiente de aprendizado de mão dupla. No caso, a instituição ensina padrões e técnicas de qualidade e segurança de dados enquanto as startups transferem conhecimento sobre realidade estendida.
“Para otimizar a utilização de metaverso no sistema de saúde é preciso, necessariamente, encontrar o parceiro adequado. Claro que é necessário investimento, mas é mais fácil saber onde se quer chegar quando se dialoga com as empresas de tecnologia, porque elas tentam encontrar soluções para suas necessidades”, conta Silva.
A associação entre uma instituição de saúde e uma startup cria uma plataforma única, com objetivo claro. “Os investidores percebem essa sinergia e podem direcionar recursos para que a tecnologia desenvolvida ganhe escala de forma mais rápida”, expõe.
O que esperar do futuro
O potencial do metaverso na saúde irá aumentar exponencialmente à medida que o grau de imersão for ampliado. Segundo Campolina, a atual tecnologia disponível em larga escala ainda é bem rudimentar. “Em sua essência, ela permite apenas enxergar um mundo semelhante a um desenho animado e ouvir sons com pouca percepção de profundidade”, comenta.
A perspectiva é de que num período entre 10 e 20 anos a experiência seja muito mais imersiva e se torne possível entrar em uma realidade em alta definição, ouvir sons em três dimensões, assim como ter sensações táteis – de calor, de frio, por exemplo – e olfativas muito próximas das que experimentamos no mundo real.
“É importante, também, entender que nossos sentidos são ‘fabricados’, e não literalmente ‘interpretados’ pelo nosso cérebro. Fótons de luz não têm cores, ondas acústicas não têm som, moléculas olfativas não têm cheiro. Quase toda a riqueza da vida é criada dentro de nossas cabeças. Isso tem uma implicação profunda, em especial para o que vamos vivenciar no metaverso”, analisa Campolina.
Para ele, a partir de um certo nível de imersão, o cuidado médico no metaverso será equivalente ao do mundo real. “Passadas algumas décadas, esse cuidado será superior às possibilidades atuais e não existirão mais barreiras físicas para a entrega desse cuidado”, acrescenta.
No entanto, segundo Silva, essa tecnologia levanta preocupações sobre a perda da interação humana e os possíveis impactos no cérebro, uma vez que a realidade virtual pode confundir a percepção do que é real e do que é simulado.
“Ainda não se sabe ao certo quais serão as consequências para o cérebro humano. O CEO do Facebook e da Meta Platforms, Mark Zuckerberg, acredita que todos terão acesso a essa tecnologia nos próximos cinco anos”, comenta o diretor do Sistema de Saúde Einstein.
Em termos éticos e regulatórios, o metaverso passará pela mesma trajetória que a telemedicina e o compartilhamento de dados (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD) passaram, porque a inovação precede as regulamentações legais. Silva acredita que só quando forem comprovadas a eficácia e a segurança da realidade estendida para tratar questões de saúde mental e as instituições de saúde começarem a utilizá-la de forma massiva ela realmente se tornará um novo serviço.